Saturday, February 24, 2007

OS OLHOS DE LEANAN SIDHE

(em parceria com LEANAN SIDHE)

Baseado em uma história real.

Sentei-me em frente ao computador, numa tentativa quase que desesperada de preencher o vazio com personagens... irreais? Talvez. Mas desde adolescente me vi cercado pela ficção e envolto nela. Decidi fazer disso meu ganha-pão. Era isso, ou acabar meus dias em algum sanatório, já que o mundo real não me satisfazia.

No mundo do ciberespaço todos somos personagens em uma grande sala de arquétipos, com vidas excitantes e cheias de glamour. Personagens não têm vidas enfadonhas; mesmo os mais introspectivos são carregados de ludicidade e filosofia, como espelhos de tudo o que queremos, vivendo num mundo moldável à nossa imagem e semelhança, um baile à fantasia com sensações reais vindas de telas inanimadas. Por outro lado - e é isso o que mais me instiga nesse universo, nessa nova dimensão - nem tudo é, necessariamente fingimento. Protegidos por telas, conexões, cabos, teclados e apelidos, é nesse mundo que podemos ser, mais completamente, nós mesmos. No ciberespaço fala-se de coisas que jamais teríamos coragem na vida dita real. Podemos ser sinceros, ninguém vai nos julgar. O máximo a que a rejeição pode chegar é nosso nick ser excluído de uma lista qualquer. Mas já estou divagando...

Naquela noite liguei o computador, a fim de ver de perto que gama maravilhosa de personagens me esperavam ali. A luz da tela invadiu parte de meu pequeno e solitário quarto, enquanto eu adentrava a uma sala cheia e silenciosa. Depois de alguns minutos de solidão virtual e de tentativas de contato ignoradas, finalmente este pobre diabo foi alvo da atenção de um outro ser:

- Boa noite.

- Hail, mon petit...

Do outro lado, um curioso nick chamou-me a atenção: Leanan Sidhe. Apelido sonoro, provavelmente retirado de algum livro, criativo e que, de certa forma, encerrava em si algo de psicótico.

- Como vai? – respondi e, a partir do contato estabelecido, as horas se passaram rápidas, preenchidas por interessantes diálogos.

Uma noite transformou-se em duas, em uma semana, em meses. A essa altura, já não podia dormir sem antes falar com ela. Eu, um homem até certo ponto normal, sem vícios, mas com virtudes, que usava a rede mundial somente para me manter atualizado ou para pesquisas a fim de auxiliarem no meu processo criativo, de repente me vi totalmente dominado por aquelas letrinhas piscando no meu computador. Ela parecia compreender minha 'necessidade' de lhe falar todas as noites. As conversas eram por vezes soltas, por vezes densas, salpicadas por uma ou outra insinuação, que ela habilmente deixava no ar, sem negar ou confirmar minhas pequenas especulações. Eu quase podia vê-la a sorrir quando escrevia com alegria, pela primeira vez eu sentia humanidade transbordando daquele pequeno espaço da tela. Aos pouco meus pensamentos iam sendo tragados para o interior da máquina, estabelecendo uma simbiose, uma relação de dependência que era amenizada todas as noites num frenético teclar. Cada palavra e expressão eram vivas, sua inteligência e perspicácia me enlaçavam aos poucos numa teia invisível e confortável, como uma manta de lã a aquecer meu corpo num dia de frio.

O estranho é que embora estivéssemos totalmente envolvidos - ou eu somente estava? -, embora nos conhecêssemos tanto, jamais havíamo-nos visto. Nem ao vivo, nem por foto. Eu nem ao menos sabia como ela era. E de certa forma, não importava. A cada novo contato, era como se uma nova face estivesse a se revelar. Eu a criava e modificava diariamente, as histórias nasciam, os palcos se iluminavam para sua passagem, o cenário, os figurantes...a atriz principal.

“É chegada a hora...”, pensei. A musa de meus devaneios, tantas vezes construída, deveria por fim revelar-se. Tomado de um constrangimento que só uma tela de computador pode esconder, pedi-lhe pela primeira vez que me enviasse sua fotografia. Os segundos passavam, a garganta secava. Os músculos de minha face descontraíram-se no momento em vi seu retrato chegando, para meu deleite.

- Cuidado...olhe lá o que vai fazer com essa foto, hein mon chèrre? - disse-me ela, jocosamente.

- Farei um vodu com ela – respondi, tentando descontrair e compor um ar de desinteresse.

Ela entrou na brincadeira, como era hábito seu, e continuamos a conversar. Mas da tela do meu computador, aqueles olhos verdes me fitavam. Sim, era uma bonita foto, mas não era apenas isso. Havia algo mais por trás daquela imagem. Tinha de haver. Nosso diálogo ainda durou mais algumas horas, mas eu já não podia tirar meus olhos de sua fotografia, aquela imagem misteriosa, magnética. Havia algo de doce e ao mesmo tempo mortífero naquele olhar, que parecia entrar em mim e desnudar-me. Senti vergonha, como se por um momento ela tivesse ciência de meus pensamentos, como se soubesse as entrelinhas de minhas palavras. Eu sentia o início de um jogo, uma trilha na direção do abismo, que por mais perigoso que o fosse, era também fascinante e impossível de ser negado.

Naquela noite, nem mesmo meus sonhos passaram impunes. Entre imagens desconexas, aqueles olhos se impunham, como flashes subliminares dentro de uma trama sem sentido. E não me abandonaram mais, desde então. Imprimi aquela foto. Levava-a comigo onde quer que eu fosse. Tinha-a como papel de parede em meu computador de trabalho. Passei a ver aqueles olhos nas luzes do semáforo. E a voz... aqueles olhos adquiriram voz. Sussurrada, rouca, a repetir-me trechos inteiros de nossas conversas. Então, diariamente, aquelas palavras e aquele olhar tornaram-se necessários; Leanan tornara-se meu vício. Foi então que este vício abateu-me.

De um momento para o outro ela desapareceu. Foram dias sem ler suas palavras, sem imaginar sua expressão por trás da tela. Eu vagava à sua procura, sem nada conseguir. Sem ela, eu não tinha mais inspiração para o trabalho, e ela não mais me falava, a não ser por seus olhos; eles continuavam ali, e continuavam a me dizer algo. O convite ainda existia, ainda sentia seu chamado, mas não ouvia mais a sua voz.

Passados muitos dias, o desânimo só não me derrotara porque seu olhar ainda me fascinava, ainda sentia sua presença. Imaginava um grande sarcasmo, eu quase podia vê-la a se divertir com minha ansiedade. Sua ausência quase doía, me questionava, me fixava ainda mais naquele olhar, que passou a acompanhar-me mesmo em minhas noites de sono.

Numa noite quente de verão, ao desligar o computador, vencido, derrotado naquele jogo do qual eu nem ao menos sabia as regras, senti um frio que entrava por uma fresta qualquer na janela e que me envolveu o corpo numa espiral. Era um vento cor de cobre, como os cabelos de Leanan. Sim, era ela, eu tinha certeza. Finalmente a havia encontrado. Ou ela me encontrara...? Não queria saber. Parei de raciocinar. Qualquer princípio de pensamento era de imediato bloqueado em minha mente. Nada poderia interferir. Temia que qualquer distração me levasse Leanan embora, e isso eu jamais seria capaz de suportar.

Não resisti. Não podia e nem queria resistir. Ao contrário, queria que ela se revelasse: corpo, olhos, cabelos, sussurros. Ela aproximou-se e pude sentir a textura de sua pele, que me tocava como a seda fria e tenra. Quando seus braços me envolveram, deixei-me cair totalmente indefeso; eu a desejava mais do que tudo, iria ao Inferno com ela, se fosse chamado a isso. Seu sorriso foi a última coisa que vi antes que uma onda de escuridão e êxtase se apossasse do meu corpo. Passaram-se minutos ou horas, creio que nunca saberei responder... sentia-me num turbilhão, numa montanha russa. Sem temor desci ao olho do ciclone, que me arrastava por um caleidoscópio orgástico, que as maiores crônicas não poderiam registrar. Seu corpo junto ao meu flutuava por lugares caóticos. Em meu vôo, distinguia formas demoníacas, que em nada me importavam. Eu estava com Leanan, e o Universo poderia entrar em colapso naquele momento, nada mais me importava.

Então senti que em meio à seda de sua pele, algo me rasgava a carne, como lâminas afiadas. Seus lábios tocaram meu peito, num beijo profundo. Ignorando a dor, segurei sua cabeça para que ela continuasse. Seus lábios sugavam meu sangue, enquanto seus olhos se mantinham fixos em mim. Aqueles olhos misteriosos, aquele convite indecifrável, finalmente se revelavam. Ela parecia ainda mais linda com meu sangue a escorrer por sua pele.

Sem forças para lutar, eu me entregava, e só desejava que Leanan nunca me deixasse. Meus braços penderam enquanto minha humanidade me abandonava. Seus olhos estavam ainda mais belos. Aproximando seus lábios dos meus, aqueceu-me com um terno e sangrento beijo, seguido da escuridão total.

Já se passaram alguns dias. Lembro ainda das fortes dores em meu corpo, mas desde então, nunca mais fui o mesmo. Ainda posso sentir Leanan dentro de mim, sinto seu pulsar, sinto sua força e a transformação que meu ser sofreu. Tudo mudou, Leanan foi a minha maior verdade, minha doce e subterrânea verdade. Sim, ela me deu um presente, presente este que não pode ser descrito em palavras. Ela me trouxe uma luz que você jamais compreenderá. A não ser que segure em minhas mãos agora...